Jesus Cristo era mochileiro e, ademais, estava em boa forma.
A ideia, quiçá profana, me acompanhou durante três dias -enquanto caminhava 60
quilômetros, escalando montanhas e cruzando rios secos na região da Galileia.
Eu seguia o trajeto de Cristo entre Nazaré e Cafarnaum. A
trilha de Jesus, idealizada em meados de 2007 por dois viajantes, atrai hoje
aventureiros e peregrinos ao norte de Israel.
É um trajeto por entre locais mencionados no Evangelho, com
episódios relacionados a Jesus. Por exemplo, Tabgha, a praia onde ele teria
multiplicado os peixes.
Caminhei sozinho, com a mochila nas costas e carregando em
meu Kindle uma versão comentada da Bíblia. Já em cima da primeira montanha,
poucas horas depois de deixar Nazaré, pensei no preparo físico de Cristo.
Porque o caminho não seria fácil.
1º DIA - Cenário urbano fica para trás e entro
no mato
A trilha começou às 7h em um hotel na cidade antiga de
Nazaré. Os vendedores ainda dormiam, e as ruas estreitas eram flanqueadas pelas
grades de ferro que cobriam as entradas das lojas. A caminhada seguiu por 460
longos degraus até o topo da montanha, de onde se via a paisagem. Destinos
distantes. Mas o ponto final, Cafarnaum, não estava à vista.
O cenário urbano logo ficou para trás. A estrada desceu a
ribanceira, cruzou uma rodovia e me jogou no mato. Às 9h, cheguei às ruínas de
Séforis, possível berço de Ana, avó de Jesus Cristo.
Dali, o caminho era logo coberto pelas árvores de uma
floresta de coníferas. Por ali passava, na Antiguidade, um importante aqueduto
romano. Passei também. Às 11h30, estava em Mash'had, terra do profeta Jonas
–aquele que, diz o texto bíblico, foi engolido por um grande peixe.
Começava, ali, um longo trecho de casebres árabes. Um vale
adiante, visitei Caná, onde a Bíblia relata a transformação da água em vinho
–para mim, em vez de um milagre, ali foi lugar do calvário do Sol e da fome.
Na saída de Caná, já diante de uma trilha de terra,
encontrei minha própria revelação: um pequeno camaleão de olhos esbugalhados
que consegui segurar nas mãos. Pensei em levá-lo comigo. Ocorreu-me que seria
ilegal. Nós nos despedimos ali.
O primeiro dia acabou cedo. Às 15h, visitando a comunidade
israelense de Ilaniya, já não tinha forças. Hospedei-me em uma fazenda de
cabras e dormi à tarde, em uma cabana coberta por ramos de um pé de maracujá.
*
2º DIA - Em trecho sem sombra, oliveiras me
protegem do sol
O segundo dia foi a demonstração de uma natureza cruel.
Depois de subir as montanhas do kibutz Lavi, vi finalmente o mar da Galileia,
ao longe. Descansei nos Chifres de Hattin, onde os exércitos de Saladino
derrotaram os cruzados europeus, em uma das batalhas mais épicas da região.
Então veio o sol de 35°C. Sem sombra.
Deitei em um banco no santuário de Nabi Shuaib, túmulo do
sogro de Moisés. Os drusos, povo de uma antiga e inacessível religião
monoteísta, peregrinam até ali. Eu só pensava nos sintomas de uma insolação e
em quando seria a hora de pedir ajuda.
Com esforço, e me escondendo embaixo de oliveiras, cheguei à
comunidade de Arbel às 16h. Amir, de quem aluguei um quarto –fiz a reserva por
telefone, no mesmo dia–, me recebeu com água gelada. Um banho frio finalmente
me acalmou. Jantei às 18h. Dormi.
*
3º DIA - Após trilha quase suicida, larguei a
mochila e mergulhei no lago
Apavorado pelo sol, acordei no terceiro dia às 5h. O
primeiro raio de luz me colocou na estrada, me levando ao topo da montanha de
Arbel –quebrada ao meio por um terremoto. A trilha, quase suicida, levava
precipício abaixo entre pedras e a vertigem. Às 8h, estava no sopé.
Reabasteci as garrafas com três litros da água do vale da
Pomba, que corre entre as duas faces da montanha rachada. Um pouco adiante, andando
nas margens do mar da Galileia, já não temia o calor. Larguei a mochila e
mergulhei no lago.
Então, um sorriso. Vi, atrás de um monte, a igreja da
multiplicação dos peixes. Depois dela, uma placa para Cafarnaum. Mesmo sob a
luz das 12h, os últimos quilômetros foram rápidos para mim.
Apenas um arranhão na perna, causado por plantas
espinhentas, e uma dor muscular generalizada me lembravam aquela primeira
ideia: Jesus estava em forma.
Fonte:
Folha.com
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